O QUE É A COMUNHÃO DOS SANTOS - parte 6
A Igreja e a Vida Espiritual - parte 2
Para o pensamento ortodoxo, o ato que funda a Igreja é aquele que foi instituído por Cristo e que simboliza, por si só, estas duas dimensões numa única - penetração em Deus pela oração e comunhão com os outros, - que constituem a razão de ser da Igreja: a Eucaristia. Evdokimov nota a este respeito: "Ela é a expressão mais adequada da Igreja. É na sua própria essência que a Igreja é comunhão eucarística, comunhão continuada, perpetuada" (Paul Evdokimov: La prière de l'Église d'Orient. Mlulhouse, 1966, p. 65).
Ela é o sinal - partilha do pão e do vinho - da participação real no Inefável, logo a realização pelo crente da sua identidade mais profunda, sinal que é, por esta razão, ao mesmo tempo comunhão com o próximo, resumindo e realizando a profundidade máxima de qualquer encontro humano: é o sinal vivido que "faz" com que uma comunidade concreta seja verdadeiramente "Igreja."
No decorrer da liturgia eucarística os crentes "constituem a Igreja, ou mais exatamente ainda, são, em conjunto, transformados em Igreja de Deus" (Alexander Schmemann: For the Life of the World. Nova Iorque, 1963, p. 14).
Por toda a parte onde este acontecimento se realiza, há "Igreja," sendo esta, portanto, para o pensamento ortodoxo, Igreja local, viva num dado lugar antes de ser Igreja universal. "A plenitude - por isso também a plenitude da verdade... encontra-se presente em cada igreja local, em cada comunidade cristã reunida em redor da mesa eucarística..." (Jean Meyendorff: L'Église orthodoxe hier et aujourd'hui. Paris, 1960, p. 182)
Sendo Cristo - manifestação histórica da vocação humana - significado pelo pão e pelo vinho, sinais tangíveis, a Igreja é bem esta comunidade visível de pessoas reunidas efetivamente, geograficamente, e não apenas a comunidade daqueles que se encontram "em espírito."
Uma vez que Deus é homem, a vida comunitária "encarnou," isto é, tornou-se visível, palpável; o espiritualismo dos "belos espíritos" não é cristão. "A existência da Igreja, nota o padre Bulgakoff, é visível, é completamente acessível à nossa experiência; tem limites no espaço e no tempo. A vida (à primeira vista) invisível da Igreja, a vida da fé, está indissoluvelmente ligada às formas concretas da vida terrestre.
O "invisível" existe no visível, está nele incluído; eles formam em conjunto um "símbolo" (A palavra "símbolo" vem de uma palavra grega que significa "reunir," "unir," "juntar.") designa uma coisa que pertence a este mundo, que lhe está estreitamente ligada, mas que, no entanto, tem um conteúdo cuja existência é anterior a todos os séculos. Está aí a unidade do transcedente e do imanente, uma ponte entre o céu e a terra, uma união de Deus e do homem, de Deus e da criatura. Sob este ponto de vista, a vida da Igreja é simbólica; é uma vida misteriosa, escondida sob sinais visíveis.
A oposição entre "a Igreja invisível" e uma sociedade humana formada em vista da Igreja interior [em cada indivíduo] mas estranha a ela, esta oposição destrói o símbolo, suprime a própria Igreja, enquanto união da vida divina e da vida das criaturas" (Serge Bulgakoff, op. cit. p. 10).
Ora, na medida em que a Igreja é o movimento de humanização dos homens numa comunidade real, sendo este movimento resumido e realizado sempre de novo na Eucaristia, ela pode ser designada por "una, santa, católica e apostólica."
Ela é una: expressão de um mesmo movimento divino na humanidade, movimento de reconciliação e de personalização, de equilíbrio e de paz, conscientemente orientado para último antecipado na Eucaristia, a Igreja não poderia ser dividida sob pena de constituir um desmentido flagrante àquilo que ela pretende encarnar. "A unidade cristã, observa o padre Meyendorff, é uma unidade com Cristo no Espírito Santo, e não uma unidade entre homens que se teria perdido na história: esta unidade está na Igreja Una, que não poderá ser dividida por querelas humanas. Os homens não podem dividir Deus e a Sua Verdade, para os reunificar em seguida: eles podem deixá-los e depois voltar a eles."
Historicamente, esta unidade jamais exclui a diversidade nos pormenores da organização interna e as necessárias adaptações às condições locais - língua, mentalidade, etc. diversidade que, como se viu, (Cfr. capítulo 1) conduziu por vezes as Igrejas ortodoxas, no decurso da sua história, a confrontações diretas (Cf. Bemard Schultze, S. J. e Johannes Chrysostomus O. S. B: Die Glaubenswelt der orthodoxen Kirche. Salzburgo. 1961, p. 116 ss).
Mas a unidade é conservada na medida em que cada Igreja local vê as outras empenhadas no mesmo dinamismo de vida, dinamismo que lhe vem do mesmo Senhor e que ela exprime através de uma mesma fé. "A unidade da Igreja é, antes de tudo, uma unidade na fé e não uma unidade de administração: a unidade administrativa não pode, com efeito, ser mais do que uma obrigação de fidelidade à Verdade" (Jean Meyendorff, op. cit. p. 184).
Esta unidade de fé não é adesão comum a dogmas abstratos, mas vida comum, vida vivida em conjunto e na plena consciência - expressa na teologia! - do empenhamento comum no e pelo mistério de Deus. Numa palavra, para utilizar um termo russo, que a designa muito adequadamente ela é sobornost, isto é, comunidade-comunhão do membro individual com o conjunto do corpo eclesial e vice-versa, sendo a natureza desta comunhão da ordem de uma relação pessoal de uns com os outros e de todos com Deus, antes de ser de ordem administrativa, jurídica ou "dogmática."
Como o diz esta passagem da liturgia do Pentecostes - celebrando a "descida" do Espírito Santo sobre os discípulos de Cristo - o que sublinha bem que esta unidade é, antes de tudo, unidade de vida e só, depois, unidade de instituição eclesiástica: "Quando o Altíssimo desceu para confundir as línguas, separou os povos (Alusão ao episódio da Torre de Babel (Gênesis 2) quando comunicou as línguas de fogo (= o Espírito) chamou todos os homens à unidade; unânimes, nós glorificamos o Espírito Santo" (Citado por Paul Evdokimov, L'Orthodoxie. Neuchãtel-Paris, 1959. p. 155).
A unidade assim vivida só pode ser, na vida da comunidade, conciliar, isto é vivida num corpo em que cada um dos membros se pode exprimir, e contribuir assim para o dinamismo do todo. Eis a razão pela qual as decisões empenham o futuro e a orientação fundamental de toda a Igreja, as comunidades orientais sempre as tomaram no decorrer dos Concílios, assembleias de representantes de todas as Igrejas locais.
"Eu decidi, escreveu o bispo Cipriano de Cartago (200-258) aos seus paroquianos, não empreender nada sem o vosso conselho e sem o acordo do povo. No meu regresso, nós julgaremos todos em conjunto" (Épitre 14:4). Além disso, uma decisão tomada por um Concílio permanece condicional por todo o tempo que não esteja aceite e assimilada em profundidade pelo povo de toda a Igreja.
A vida de Deus que anima a comunidade é primeira em relação a todo o aparelho de organização e assim um concílio pode ser a expressão da tomada de consciência da Igreja perante o Inefável "não para ser formalmente constituída por representantes acreditados de todas as Igrejas locais, mas [somente] porque deu testemunho da fé e revelou a verdade" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 160).
A Igreja é, pois una porque "Deus não pode ser dividido," una sem ser uniforme, una na complementaridade conciliar dos seus membros; por outro lado, ela é uma comunidade universal cujos membros encontram o mesmo Cristo em cada comunidade local.
Esta unidade na diversidade das suas implantações locais é efetiva não somente no espaço, mas também no tempo, através dos séculos: a Igreja é apostólica, isto é, permanece fiel à intuição que os Apóstolos de Cristo tiveram da proximidade de Deus manifestada na pessoa do seu mestre e junto de todos os homens. "Apostólica, nota Evdokimov, significa idêntica à essência do germe transhistórico confiado aos apóstolos" (Ibid. p. 161).
E está aí, aos olhos dos ortodoxos, o papel essencial dos bispos (nos primeiros séculos: dos padres) e da sua ordenação: o de representarem, pelo seu ensinamento e pela sua autoridade, a continuidade do movimento divino significado pela Eucaristia, movimento de que os Apóstolos, e particularmente S. Pedro, foram os primeiros a tomar consciência. "A função que o bispo desempenha, observa o padre Meyendorff, supõe que ele ensina em conformidade com a pregação comum do colégio apostólico, de que Pedro foi o porta-voz, que ocupa, à mesa eucarística, o mesmo lugar do Senhor, que é, como escrevia Inácio de Antioquia no século 1, a "imagem de Deus" na comunidade de que ele é o chefe" (Jean Meyendorff, op. cit. p. 183)
A ordenação dos bispos (e, por eles, dos padres) é assim sinal da sucessão apostólica, da unidade da vida da Igreja não somente no espaço mas também no tempo. E é bem - uma vez mais - a unidade de vida que assim é significada, da verdadeira vida realizada na presença do Inefável, e não de uma vida "eclesiástica" particularmente "religiosa," separada da "vida normal." "Cristo revelou que a natureza do sacerdócio é o amor, sendo assim o "sacerdócio" a essência da mesma vida. Morreu, foi a última vítima da religião dos sacerdotes e, na sua morte, a religião dos sacerdotes foi abolida, ao passo que a vida sacerdotal de todos os homens foi inaugurada.
Cristo foi assassinado pelos sacerdotes, pelo "clero," mas o seu sacrifício destituiu-os da mesma forma que aboliu a "religião." Aboliu a religião porque destruiu o muro que separava o "natural" do "sobrenatural," o "profano" do "sagrado," o que é "deste mundo" daquilo que "não é deste mundo" - distinção que era a única razão de ser da religião.
Cristo revelou que todas as coisas são feitas novas no amor. E, se há sacerdotes na Igreja, é precisamente para revelar que toda a vocação humana é sacerdotal, para ajudar os homens a fazer do conjunto da sua vida à liturgia do Reino, para manifestar que a Igreja é o sacerdócio real do mundo renovado."
É desta ordem que é o sacerdócio, sinal de unidade da Igreja através dos séculos, é desta qualidade essencial que é a ordenação dos padres, simples índice da continuidade do movimento de Deus na comunidade humana desde Cristo até hoje.
Esta unidade interpessoal no espaço e no tempo é a própria expressão da santidade da Igreja, isto é, do irradiar de Deus na humanidade, tal como se manifesta através da Eucaristia. A "santidade" não é uma "coisa" que a Igreja "possuiria" através do sacramento, recebe dela o dom sempre renovado, o dom da presença divina humanizante. Este dom, nenhum homem - nem mesmo o "santo" - o assimilou ainda inteiramente, estando cada um por sua vez "na Igreja," e fora dela, a caminho da "santidade," isto é, da sua verdadeira identidade de homem exatamente fundada sobre - e orientada para e pelo - Inefável.
A Igreja, para o pensamento ortodoxo, pode ser chamada "santa" somente porque ela é a comunidade dos homens ainda muitas vezes bem desumanos, mas vivendo da certeza de que, para lá da sua imperfeição, Deus os humaniza pela sua presença no meio deles. Eis a "santidade da Igreja..." A Igreja não cessa de implorar a graça vivificante, a fim de regar o solo árido e o deserto do humano: "Envia-nos o teu Santíssimo Espírito que santifique as nossas almas e as ilumine (Oração do ofício da Ascensão. Paul Evdokimov, op cit. p. 156 ).
Continua...
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