“Os Irmãos”, - 2 -As origens e os primeiros anos do movimento dos Irmãos Unidos no Brasil -- continuação
A ruptura
Depreende-se que o estopim do processo conflituoso que já vinha acon tecendo de maneira velada entre Darby e Newton, tenha sido exatamente o sistema de interpretações proféticas e escatológicas desenvolvido por Darby. Durante o outono de 1837, Darby ministrou numa igreja dissidente que se reunia em Bourg-de-Four, Genebra. Ele já contava com grande prestígio e foi incentivado a promover seus ensinos na Suíça por vários amigos e cooperadores, dentre os quais Antony Norris Groves (BURNHAM, 2006, p. 149-150). Darby promovia palestras para ensinar seus conceitos de profecia e escatologia que desfrutavam de popularidade entre os cristãos evangélicos de Genebra e Lausanne. Mas passou também a se opor à eleição de presbíteros ou pastores, alegando que se os anciãos, no Novo Testamento, eram eleitos pelos apóstolos e, não havendo mais apóstolos, não deveria mais haver an ciãos4. Afirmava que qualquer eleição para o governo ou apascentamento da igreja era uma intromissão, posto ser a direção das assembleias ato exclusivo do Espírito Santo (BURNHAM, 2006, p. 153).
Tais ideias não tiveram receptividade. Remover o governo da igreja em favor de uma estrutura vaga e subjetiva pareceu aos líderes tanto da igreja estatal quanto das dissidentes a receita para o desastre. Durante as estadas de Darby na Suíça, Newton figurava como o último daqueles primeiros irmãos a aderirem ao movimento ainda ministrando em Plymouth. Seu prestígio crescia e a gráfica fundada por dois presbíteros (Clulow e Soltau) ajudava na promoção dos ensinos de Newton, imprimindo numerosos folhetos e a revista Testemunho Cristão (Christian Witness). Darby passou a demonstrar preocupações com a importância de Newton na assembleia de Plymouth, ainda mais com as já notadas diferenças teológicas entre ambos. Após encontrar-se com Darby para tratar a questão, Newton teria declarado: [...] a diferença entre nós era tão radical, tão vital, que eu disse a Tregelles que eu retornaria a Plymouth na manhã seguinte e arranjaria todas as coisas para deixar com pletamente a assembleia de Plymouth – E eu deveria ter feito isso – teria poupado toda a tristeza que veio a seguir (BURNHAM, 2006, p. 154-155). 4
Vale citar que, paradoxalmente, Newton concordava com Darby quanto à rejeição de ordenação formal de pastores ou anciãos, mas afirmava que aqueles com o dom para o presbitério deveriam ser reconhecidos e conduzidos a exercê-lo em favor da assembleia (BURNHAM, 2006, p. 160). 173 Revista Caminhando v. 21, n. 1, p. 165-181, jan./jun. 2016 Newton deixa então sua peculiar reserva no trato com Darby e publica as chamadas Five Letters (Cinco Cartas), confrontando as visões escatológicas e o sistema de interpretações de profecias de Darby, assim como o conceito de arrebatamento secreto, que ele considera como perigoso e com potencial para abalar os alicerces do cristianismo. Darby reagiu prontamente e acusou Newton de fomentar desconforto para todas as assembleias dos Irmãos. Evitando refutações pontuadas das alegações de Newton nas Cinco Cartas, disse não ter entendimento definitivo sobre o ar rebatamento secreto, e concluiu que Newton fora motivado por autopromoção e pelo desejo de influenciar os Irmãos (BURNHAM, 2006, p. 156).
Chocado, Newton decretou o fim da amizade entre eles e sugeriu que evitassem debater assuntos escatológicos em favor da harmonia cristã. Dar by retornou para a Suíça, onde manteve suas reuniões de ensino, não sem oposição, enquanto Newton permaneceu em Plymouth dedicando-se aos estudos e ao ensino, repartindo as necessidades pastorais da assembleia com os anciãos Harris e Soltau. Em 1841 um artigo publicado na revista Testemunho Cristão reacendeu as chamas do conflito. O artigo, expressando o entendimento organizacional da Rua Ebrington5, afirmava que o dom de ensino poderia ser exercido em qualquer localidade, mas o de governo exclusivamente na igreja local. Assim Darby percebeu-se convidado a não interferir em assuntos internos dos Irmãos em Plymouth. Quando Darby retornou à Rua Ebrington no verão de 1843 não escon deu sua decepção e declarou que a ação do Espírito havia sido extinguida naquela assembleia. Estava convencido de que os Irmãos em Plymouth haviam decaído para a institucionalização de um clero oficial. A partir de 1844 a oposição de Darby aos ensinos de Newton começa com a denúncia de erro em interpretações e culmina em árdua discussão acerca da cristologia de Newton, considerada como herética por afirmar que Jesus havia também padecido pelos pecados inerentes à sua associação com a raça humana e com o povo judeu – da qual o próprio Newton apresentara retratação (BUR NHAM, 2006, p. 197-200). Ao abandonar a Suíça em 1845 por conta de uma revolução que eclo dira em Genebra, Darby dirigiu-se a Plymouth, disposto a lutar pela alma do movimento dos Irmãos (BURNHAM, 2006, p. 164). A refrega foi intensa. Não é possível pormenorizá-la neste trabalho. Cita-se, então, que a troca de acusações acontecia onde houvesse oportunidade, em reuniões de culto ou de estudo, por cartas e panfletos. 5 174 Endereço no qual os Irmãos de Plymouth haviam construído sua capela.
Além das questões doutrinárias, acusações de caráter moral tomaram vulto quando Darby acusou Newton de alterar (suprimir) deliberadamente trechos de seus escritos (as Cinco Cartas), em uma tentativa de negar o que havia sido por ele afirmado. Foram estabelecidos grupos para a investigação do embate, principalmente quanto às acusações de imoralidade que recaíram sobre Newton. Lorde Congleton, um dos investigadores, concluiu que apesar de haver inclinações ao sectarismo e ao clericalismo na assembleia da Rua Ebrington, Newton não era culpado de desonestidade moral ou qualquer engano intencional (BURNHAM, 2006, p. 178). O fato é que um cisma devastador já estava consumado em Plymouth.
Darby e Newton empenharam-se em confirmar suas posições e atraíram após si simpatizantes, dividindo os afetos dos crentes daquela localidade. Em 28 de dezembro de 1845 Darby e seus apoiadores estabeleceram outro ponto de reunião em Plymouth, em uma capela situada na Rua Raleigh, consolidando a divisão (FILGUEIRAS, 1991, p. 49). A questão da já citada cristologia de Newton havia causado divisão entre os presbíteros em Plymouth. Alguns não mais confiavam plenamente nele. Não havia então mais suporte para Newton em Plymouth. Em 8 de dezem bro de 1847, Benjamin Wills Newton deixou a assembleia de Plymouth para nunca mais ensinar e tampouco congregar entre os Irmãos (FILGUEIRAS, 1991, p. 50). Um jornal local publicou uma nota de lamento: Soubemos que o sr. Benjamin Wills Newton, um dos pregadores entre os “Irmãos de Plymouth”, deixou Plymouth com a determinação de não mais retomar seus trabalhos ministeriais. A perda ocasionada pela aposentadoria dessa pessoa afável e talentosa será fortemente sentida por muitos que a ele estavam ligados, não apenas por laços comuns, mas por aqueles de respeito e amor (BURNHAM, 2006, p. 200). Porém, o cisma não havia ficado restrito à assembleia de Plymouth. As demais localidades foram instadas a tomar partido do que ocorria, e o caso mais emblemático envolveu a assembleia em Bristol. Quando dois homens oriundos de Plymouth foram recebidos à comu nhão em Bristol (capela Bethesda), apesar de terem sido examinados quanto à assimilação dos erros doutrinários de Newton (CONARD, 2004, p.48), Darby declarou estar impedido de ir à Bethesda, pois ali havia seguidores de Newton. Em reação aos postulados de Darby os dez anciãos de Bethesda escreve ram à igreja a chamada The Letter of the Ten (A Carta dos Dez)6, expressando repúdio aos erros cristológicos de Newton, mas insistindo que a questão deve ria ser examinada tão somente no âmbito da localidade na qual teria ocorrido, 6 The Letter of the Ten. Disponível em: < http://www.bruederbewegung.de/pdf/letteroftheten.pdf >. Acesso em: 18 nov. 2015. 175 Revista Caminhando v. 21, n. 1, p. 165-181, jan./jun. 2016 e afirmando ser um erro rejeitar a comunhão a qualquer pessoa tão somente por terem vindo de uma assembleia na qual tenha havido ensino errôneo.
Darby, não satisfeito, visitou Müller e Craik, solicitando que a carta fosse revogada e Bethesda examinasse as heresias de Newton, sob amea ça de excomunhão (CONARD, 2004, p. 49). Os presbíteros de Bethesda mantiveram suas convicções em não arrastar a assembleia de Bristol para essa contenda, bem como a de sustentar a independência e autonomia de cada igreja local. O documento redigido em Bethesda foi considerado como insuficiente, ambíguo e insípido. E é tratado com ironia por Andrew Miller (2005, p. 76): “Essa foi a posição adotada pelos homens mais inteligentes de Bethesda, segundo esse notável documento, e isso antes que o erro em questão houvesse sido julgado”. Finalmente, em 26 de agosto de 1848, John Nelson Darby publicou uma carta excomungando toda a igreja de Bethesda, sob a acusação de admitir pessoas que sustentam falsas doutrinas. A excomunhão foi ampliada para qualquer igreja que admitisse pessoas de Bethesda. Recusando-se a quaisquer atitudes de atrito, e mantendo-se alheios, os Irmãos em Bristol continuaram a crescer, apesar de, no princípio da controvérsia, cerca de 50 ou 60 membros terem deixado a congregação (MILLER, 2005, p. 77).
Registrou-se que a maior tristeza de George Müller, não menciona da em sua autobiografia, foi exatamente essa controvérsia, que lhe teria trazido “grande tristeza e amargura de coração” (SHORT, 1983, p. 143). Assim estava dividido o movimento que nascera pelos anseios de uni dade: Abertos e Fechados, que experimentaram outros cismas ao longo da história. O escritor Jonathan Burnham, que se diz beneficiado por analisar os fatos por meio da retrospectiva, conclui asperamente que “o amargo conflito travado entre Darby e Newton parece apenas uma disputa entre duas perso nalidades fortes, ambos disputando o poder em uma pequena, idealista, mal estruturada e separatista seita cristã” (BURNHAM, 2006, p. 204). Ter-se-ia cumprido o vaticínio de Antony Norris Groves, que em carta a Darby o teria alertado nos seguintes termos: “vocês serão conhecidos mais pelo que são contra do que pelo que [sic] vocês concordam” (FILGUEIRAS, 1991, p. 44)? Ou ainda existem caminhos para aqueles primeiros princípios e ideais evangelizadores, missionários, teológicos e, sobretudo, os que alme javam a unidade entre os cristãosv?
continua...
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