O PAPEL DA FÉ - terceira parte


Os tipos de fé

No início falei que todos os sistemas religiosos são sistemas de fé, todos as filosofias, ideologias, ciências, técnicas, enfim tudo o que fazemos na vida é baseado em fé. Não pretendo fazer uma classificação teórica da fé aqui, mas vou tipificá-la nessas categorias apenas para demonstrar o raciocínio a que quero chegar.

Alguns classificam os tipos de fé apenas em dois tipos, natural e sobrenatural, ou religiosa como outros chamam; outros falam de fé natural e fé aprendida; outros falam de um terceiro tipo, a fé que, se confirmada pelo hábito ou pela experiência, constituiria um tipo de fé diferente das anteriores. Todas essas visões são bem interessantes e tem algo a nos dizer sobre fé (lembrando que fé não quer dizer crença simplesmente, mas confiança e ou certeza intuitiva). 

Realmente quase toda fé que utilizei como exemplo anteriormente vai ser classificado na fé natural e na fé aprendida ou condicionada pelo hábito e pela experiência. Note bem isso, estes dois ou três tipos de fé são requeridas e indispensáveis na nossa vida. Se você procurar e analisar bem o seu dia vai verificar que são a todo instante realizados atos de fé, e muitas vezes fé cega e até crença estúpida de vez em quando. Mas quero classificar toda e qualquer manifestação desses tipos (desde a instintiva até a aprendida e confirmada pela experiência) apenas como natural para demonstrar o que falei no início.

Vamos por enquanto deixar a religião por último porque ela pode ser que requeira outro tipo de fé, a sobrenatural ou especificamente religiosa (ou transcendental como dizem outros ou metafísica...), que em alguns casos não pode se basear no que se vê ou experimenta, mas exatamente até no oposto. 

Fé instintiva e fé aprendida


A fé instintiva se manifesta por exemplo desde que você acorda, você põe o pé no chão às vezes sem nem abrir os olhos, por alguma razão (ou nenhuma de fato) você tem certeza que o chão estará lá; tem certeza que sua casa estará praticamente do mesmo jeito que estava no dia anterior; que vai andar pondo um pé na frente do outro e que vai abrir a geladeira e a lâmpada da geladeira vai ascender. Embora nada disso esteja garantido de fato, pode acontecer algo diferente, o chão pode ter sido aberto, ou sua casa um sonho, ou as pernas não obedecerem ou a lâmpada da geladeira queimado, mas você confia pela sua experiência e aprendizado, e, caso contrário, a vida seria muito difícil, cheia de medos e incertezas, você é praticamente obrigado a confiar em tudo isso.

A fé intuitiva é o mesmo que a fé instintiva (alguns autores, porém, fazem alguma distinção). Mas ela pode ser formada um pouco antes da confiança descrita nos exemplos acima, por exemplo, no reconhecimento simples dos objetos. Embora essa distinção não seja verdadeira, pois a experiência da criança também foi necessária para chegar nesse ponto e até numa identificação e rotulagem. A pessoa que olha para um ventilador e afirma ver um ventilador está afirmando uma intuição, é dada uma convicção pela confiança nos sentidos, portanto uma fé, mas não esqueçamos que essa confiança nos sentidos também, se não surgiu, pelo menos se desenvolveu com base na experiência e aprendizado. 

Isso é uma fé natural e instintiva, mas sobre as ideologias, sistemas religiosos, ciência, etc. você precisa ser convencido um tanto mais racionalmente que pela simples experiência cotidiana. Existe aí uma forte influência da razão, da linguagem (portanto todo simbolismo é muito influente também), das escolhas (portanto da intencionalidade e dos afetos), além da simples experiência.

A filosofia e as ideologias todas tem um forte componente de fé, que se tem que empenhar nelas. Já parte dos pressupostos de alguma realidade em questão, como demonstrado anteriormente, as crenças da fé natural. Então vem o básico de toda filosofia praticamente, a fé na razão, na lógica, na argumentação, no pensamento rigoroso e bem refletido, entre outros fundamentos, que se for feito segundo certas regras seria confiável, e suas especulações capazes de trazer algumas elucidações e até revelações importantes. Toda filosofia e ideologia parte de pressupostos que na maioria das vezes nunca foram discutidos, são simplesmente tidos como evidentes e existentes, uma convicção (ou seja fé) compartilhada por todos (ou pelo menos a grande maioria).

Exemplos disso encheriam livros, tais como as cores (que de fato só "existem" em nosso cérebro), a sociedade, os elementos (ou as sensações desses), o equilíbrio dos sistemas, o inconsciente, a razão  pura, os números, a lógica, a natureza, o tempo, o passado, o eu, as fases da lua, a super população, os conjuntos, etc.. Nada disso pode de fato ser rigorosamente comprovado, não passando de nomes, generalizações, classificações, rótulos, conceitos e expressões de liguagem para se referir vagamente a algumas impressões humanas ou revestir idéias mais vagas ainda em outros casos. Na verdade qualquer sistema de idéias se baseia em idéias, convenções práticas, e todos são idéias e conjuntos de idéias (completamente dependentes da linguagem inclusive, e da língua, das palavras, dos nomes...).

A fé filosófica

Muitas filosofias se dizem realistas por uma mera crença em especial, elas creem nos sentidos, na memória, nas informações que são compartilhadas (quando alguém confirma algo que se nos aparece aos sentidos, exatamente como num sonho também isso acontece). Mas não é apenas questão de princípios básicos da filosofia (algumas filosofias discordam desses pontos de apoio inclusive). O mais espantoso é que cada filosofia avança enormemente nesse processo em suas próprias especulações derivadas de algum pensamento tido como certo e irrefutável e é assim construída toda uma pirâmide invertida partindo de um ponto axiomático (que pode estar errado), justamente ao contrário do que a ciência tenta fazer, pois reúne o máximo de "certezas" anteriores possível para ir erguendo seu edifício (e não derivando conclusões a partir de um só ponto). 

Então em se tratando de bases, comparando com a ciência e a religião, a filosofia é a que tem menos base, sua base é a mais estreita de todas. A filosofia pode ter como certas idéias apenas imaginadas se forem apoiadas pela lógica racional. E mais incrivelmente ainda, existem filosofias chamadas irracionalistas, cujas idéias racionais supostamente destroem com seus argumentos a base da razão. 

A fé natural tem como critério a experiência além da intuição ou instinto como dizem uns. Mas são poucas as filosofias empiristas, e muitas construções filosóficas põem em questão justamente essa base da experiência, algumas a negam como um bom critério.  Não quero trazer aqui uma classificação acadêmica típica dos cursos de filosofia das universidades, pois se trata de uma ideia geral apenas que qualquer um pode discutir, mas se formos discutir as classificações, a epistemologia e a fundamentação da filosofia encontramos algo muito plural e discordante entre si, todos tidos como base certa e fundamentação segura da filosofia por seus expositores. 

Enfim, neste ponto a filosofia e todas as ideologias não diferem da religião em matéria de fé. Podemos dizer ainda que em muitos casos é muito menos criteriosa que algumas religiões. Ou ainda que são bem mais pobres em matéria se segurança do do afirmam porque muitas sequer utilizam o aparato completo que a fé natural utiliza para suas certezas, pois se reduzem à razão, à metafísica, a experiência, à observação e descrição, à linguagem, etc. ou alguma combinação reducionista de dois ou três desses fundamentos. Enquanto que a fé dispõe naturalmente de todos esses fundamentos em sua construção. Embora algumas pessoas enfatizem mais um ou outro desses fundamentos ninguém faz isso de forma sistemática como um filósofo ou ideólogo que exclui propositalmente alguns fundamentos que por seus critérios subjetivos, muitas vezes pessoais, inexplicáveis. Portanto em grau de subjetivismo e confiabilidade à filosofia ou qualquer ideologia é bem menos criteriosa que a fé e muito menos confiável, exigindo grande grau de convencimento e crença para ser aceita. Não são um tipo de fé natural no sentido de instintivas, mas no sentido de aprendidas (e com certa dificuldade, esforço e anulação de capacidades e critérios) e tendo como base de suas idéias, mais que qualquer critério, outras idéias. Portanto a filosofia e qualquer ideologia estão incluídas na fé natural, apesar de ser uma fé bem mais frágil e discutível que as outras intuitivas e aprendidas. São fés.

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